Ninguém pode ser indiferente à luta contra a miséria, a pobreza e a desigualdade. A frase do Padre Julio Lancelotti ecoa como um apelo a toda sociedade, num momento em que o Brasil vivencia uma situação dramática, sobretudo, nas áreas metropolitanas e capitais, com o aumento da  população de rua, de um processo de pauperização sem precedentes e com o número de famintos, pós-pandemia, na casa dos 33 milhões de brasileiros.

No Brasil miserável, no qual vivemos, a visibilidade do trabalho do padre pela  erradicação da pobreza e contra a aporofobia (desprezo/medo e ódio ao pobre) cresce, na mesma proporção que os pobres tomam as ruas, expulsos de seus empregos e casas, com a crise econômica. ‘Só na cidade de São Paulo, o número da população de rua aumentou 53%, nos últimos dois anos”, informa Lancellotti.

Para minimizar esse quadro, Padre Julio defende que temos que ser aporofóbicos em desconstrução. “Assim como lutamos contra o racismo, contra o feminicídio, contra o machismo, temos que lutar contra a aporofobia, que castiga, pune e manifesta desdém e indiferença aos mais pobres”.

A vivência do padre com a população de rua, por mais de 40 anos, tem motivado grupos a lembrar o seu nome para o Prêmio Nobel da Paz. Em junho deste ano, foi iniciada a coleta de assinaturas para  apresentação de Padre Julio ao Comitê Norueguês do Nobel. Fato que  ele trata com uma naturalidade espantosa. “O mais importante é que nós, todos, lutemos pela paz”, afirma, e desconversa sobre tão importante honraria.

Padre Julio é graduado em Pedagogia e Educação, com especialização em Orientação Educacional e Teologia. Ativista dos direitos humanos e pároco na Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, em São Paulo. Neste diálogo, ele não deixou de enviar uma mensagem aos jovens das classes  populares: “não aceitem o mundo como ele é. Resistam!”. Acompanhe toda a conversa!

PROXIMIDADE COM A EDUCAÇÃO

WASH: O Senhor atuou em algum momento com a pedagogia?

Pe. Julio Lancellotti: Eu trabalhei como professor, alfabetizando em  nível médio e, também, no superior, como assistente de docente da área de História da Educação. Como fiz Pedagogia, dei aulas para grupos de formação de magistério de nível médio e como a licenciatura era plena, atuei no Ensino Fundamental, também, com alfabetização de crianças.

POBREZA E FOME

WASH: Gostaríamos de ouvi-lo sobre a questão da insegurança alimentar que assola o país. Como o Sr. atua com a com a população mais pobre (população de rua e drogados), vê de perto a fome deste povo, que só cresce pós-pandemia. Como construir uma cultura de solidariedade permanente no País?

Pe. Julio Lancellotti: A questão da alimentação está muito ligada à questão da renda, do desemprego, da falta de moradia; porque se não há renda, não há  acesso à alimentação. Vivemos um momento tão dramático que não há, muitas vezes, acesso à água potável, que é um alimento também. Vimos ser negado um copo ou uma garrafinha d’água à população pobre, que se vê obrigada até a consumir água contaminada, água de reuso; e a pandemia só agravou essa situação.

WASH: O Brasil conseguiu alcançar a triste marca de mais de 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, um aumento de quase 14 milhões de famintos em menos de 2 anos. Sempre presenciamos a questão da fome no país, mas vivemos o pior momento para a população miserável, com a pandemia; e essa grave crise econômica, com a alta de preços que tem impossibilitado até mesmo a ampliação da solidariedade e das doações. O Sr. poderia comentar esse cenário?

Pe. Julio Lancellotti: A pandemia agravou esse cenário, porque muitas pessoas perderam seu trabalho, perderam sua renda e ficaram sem qualquer possibilidade de manter o seu grupo familiar. É mesmo uma situação dramática, sobretudo, nas áreas metropolitanas e capitais, que vivem o aumento da população de rua e uma pauperização sem precedentes. Hoje, a cesta básica tem o preço muito alto e o salário mínimo não paga os alimentos. O salário paga, a cada dia, menos alimentos, não só quantitativamente, mas qualitativamente, também.

COMBATE À FOME

WASH: O Brasil é um país rico, bate recordes consecutivos na produção de diversos alimentos e grãos; portanto, não falta produção, abastecimento, nem alimentos, só isso já deveria contribuir para minimizar o problema da fome, mas sabemos que essa produção não chega aos mais pobres. Quais são os caminhos que devemos trilhar ou retomar para mudar isso?

Pe. Julio Lancellotti: A gente teria que perguntar rico, para quem? O Brasil não é um país rico para todos. É somente para uma elite, para uma minoria. A maioria da população brasileira está descartada, desapropriada, vive a insegurança alimentar, está em sofrimento, sem o mínimo necessário. Sabemos que grande parte da produção no país vai para fora, para a exportação, e não fica para o povo. O povo, mesmo, não tem acesso. Nós, também, assistimos ao empobrecimento da agricultura familiar, até mesmo a sua destruição. Existe um boom do agronegócio, que busca apenas a exportação, que não quer saciar o povo. Vivemos, portanto, essa situação de desigualdade muito grande, que tem como sintoma muito forte e letal, o que chamamos de fome.

FOME x APRENDIZADO

WASH: Entre os mais afetados com a insegurança alimentar estão as crianças e jovens. E todos sabemos da importância da alimentação para o desenvolvimento cognitivo. Sabemos que a escola é, muitas vezes, a única fonte segura de alimentação para boa parte da população.

Padre Julio Lancellotti: Sem dúvida, a fome, principalmente, na primeira infância é causa de morte e, também, de lesões irreversíveis. As crianças mais pobres não se alimentam adequadamente, por isso a importância do aleitamento materno e de uma assistência continuada às mulheres e mães, para que as crianças tenham condições dignas. E, o pior, é que vemos uma quantidade enorme de fakenews sobre aleitamento. Neste cenário, não poderia deixar de lembrar a atuação de Zilda Arns, que tanto trabalhou pelo aleitamento, neste país. É preciso garantir, desde cedo, a assistência, à saúde da mulher e da mãe, como já é previsto no Estatuto da Crianças e do Adolescente (ECA), para se garantir condições dignas e alimentação adequada à infância. Não há democracia, quando grande parte de nossas crianças empobrecidas são lesadas pela fome.

POPULAÇÃO DE RUA

WASH: Focando na cidade de São Paulo, a Pastoral do Povo da Rua tem uma estimativa do aumento da população em situação de rua, nos últimos anos?

Padre Julio Lancellotti: A população de rua, de acordo com dados oficiais da Prefeitura de São Paulo, cresceu 53% em dois anos. Isso se repete em âmbito nacional, em muitas cidades. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) coloca que, tendo como parâmetro o CadÚnico (registro das famílias de baixa renda junto ao Governo Federal), esse aumento pode ser até maior.

Nessas últimas semanas, tenho perguntado a pessoas/população de rua, quantos ainda não estão no CadÚnico, e esse número é bastante significativo. Só em São Paulo, temos cerca de 42 mil pessoas nas ruas.

WASH: E como reverter esse quadro? É muito difícil, não?

Padre Julio Lancellotti: Cada dia é mais difícil sair das ruas, porque essa população vai perdendo tudo. Perde-se a moradia, as roupas e a autoestima. E essa população vai sendo agredida, sendo tratada de forma cruel. Estar na rua é uma condenação da qual a pessoa não se livra tão fácil.

APOROFOBIA

WASH: Por que esse discurso contra o pobre vem crescendo e, ao invés de misericórdia e solidariedade com os mais desfavorecidos, assistimos ao aumento do ódio aos pobres?

Padre Julio Lancellotti: O discurso da aporofobia busca criminalizar o pobre, ao invés de nos esforçarmos para superar a pobreza. É uma situação terrível! Como diz o Papa Francisco, em sua exortação apostólica, o sistema neoliberal fabrica a pobreza, mas quer esconder o pobre.

Em São Paulo, o crescimento imobiliário e a especulação, neste setor, têm como inimigo os pobres e trata com muita violência esse grupo. Podemos dizer que, hoje, há uma pandemia da violência contra o pobre, com o genocídio da população negra e o aumento do feminicídio. Tudo isso é sintoma da aporofobia. Ela está presente em todos nós e temos que ser aporofóbicos em desconstrução. Assim como lutamos contra o racismo, contra o feminicídio, contra o machismo, temos que lutar contra a aporofobia, que castiga, pune e manifesta desdém e indiferença aos mais pobres.

Eu acredito que o neoliberalismo, além da questão econômica, é uma epistemologia. Nós pensamos de forma neoliberal, nossa forma de agir é dentro dos significados do universo do neoliberalismo. Nós pensamos sempre em crescimento pessoal e individual, porque o neoliberalismo é individualista, tem a primazia do lucro e do ganho. E tudo isso vai mandando na nossa maneira de pensar e no nosso comportamento, que é neoliberal. A aporofobia é um sintoma desse sistema.

NOBEL DA PAZ

WASH: Pelo seu trabalho com os mais vulneráveis e pela erradicação da pobreza, o seu nome já foi lembrado para o Nobel da Paz. E, agora em junho, foi iniciada a coleta de assinaturas para a apresentação do seu nome ao Comitê Norueguês do Nobel. Como o Sr. se sente com tal honraria? Essa premiação ajudaria bastante nas ações com a população mais vulnerável?

Padre Julio Lancellotti: O mais importante é que todos, nós, lutemos pela paz, por uma paz que é fruto da justiça, que garanta que cada um tenha aquilo que é necessário. Nem falo de igualdade, mas de equidade, porque diferenças sempre existirão; e a cada um, aquilo que ele necessita.

Nós precisamos lutar. Ninguém pode ser indiferente à luta contra a miséria, a pobreza e a desigualdade.  Algumas coisas podem ser feitas de forma imediata; como, por exemplo, a regulamentação da Renda Básica, que já está aprovada no Brasil e precisa ser regulamentada, para garantir proteção às mulheres, às mães e alimentação para todos, independentemente de estar em programas tão burocratizados, que impedem o acesso dos mais pobres. Que todos tenhamos esse compromisso.

MENSAGEM AOS JOVENS

WASH: Também, pedimos uma mensagem sua para as crianças e adolescentes do Projeto WASH, para incentivá-los numa cultura de solidariedade, sobretudo, num país com tantos necessitados como o Brasil.

Padre Julio Lancellotti: Nós não podemos falar de forma genérica com a juventude brasileira, porque ela é bem diversa. A juventude negra não é a mesma juventude que frequenta os shoppings. Eu deixo minha mensagem para os jovens negros, empobrecidos e das classes populares: “não aceitem o mundo como ele é. Resistam! Insistam! Sejam criativos. Desconstruam essa sociedade do jeito que ela está. Não tenham medo da dança, do sonho, da luta, da construção, do RAP e de todas as formas de manifestação, do seu batuque, do seu grito e da sua ginga. Questionem e construam com criatividade. Coragem a todos!”

Texto: Denise Pereira