Para muito além do legado da economia – espaço em que foi explorado e escravizado ao longo de séculos, mas construiu enormes riquezas em todo o planeta, apropriadas pelas elites; para além da herança cultural, o negro deixou contribuições relevantes na ciência, que ainda continuam tendo que ser descortinadas. Se até hoje assistimos pessoas afirmarem que não conhecem médicos ou professores negros, imagine se questionarmos sobre grandes descobertas científicas feitas por negros. Você, que está lendo, saberia apontar? Muitas delas estão no seu cotidiano, responde o bacharel e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Educação Básica da Secretaria Municipal de Educação do município de São Paulo, autor do livro Gênios da Humanidade, Ciência e Tecnologia e Inovação africana e afrodescendente, Carlos Eduardo Dias Machado. “Geladeira, semáforo, o pino de golfe, o filamento de carbono da lâmpada elétrica ─ que está em diversas residências – foram inovações descobertas por negros”, conta. Sem sair de casa, logo na sua porta, a maçaneta, a chave, o interruptor são outros inventos de negros, que também criaram a tábua de passar roupa, o vidro e muitos outros.
A lista não para aí! Os legados continuam com o uso do método científico, a Matemática, que começou na África; a Química, a Astronomia, a Filosofia, o conceito de alma, de vida eterna, de julgamento dos mortos, o GPS, o uso do tecido de algodão, os pigmentos dos mais diversos, a instrumentação cirúrgica, o entendimento de que o ano é dividido em 12 meses – 365 dias, e o mês tem, geralmente, 30 dias, o dia tem 24 horas, acrescenta o historiador.
Nesta entrevista, que marca o Dia da Consciência Negra, o Programa WASH abriu espaço para o, também, autor de Wakanda é para sempre, tradições africanas milenares decifradas para entender o filme Pantera Negra, articulista da Revista Raça Brasil e ativista do Movimento Negro, desde 1978; atualmente deputado pelo Estado da Diáspora Africana, com sede no Reino Unido; e ex-bolsista de pós-graduação da Ford Foundation, nos Estados Unidos.
Machado destaca as questões raciais, fala sobre o embranquecimento de figuras negras de destaque, sobre a necessidade do espelhamento e das políticas afirmativas para romper com o racismo.
WASH: Como o Sr. ─ bem ─ coloca, grandes cientistas são figuras associadas ao padrão branco; praticamente à descendência europeia, algumas vezes, asiática. Isso se explica por que os negros, historicamente (sócio e economicamente), foram impedidos de exercer o direito à educação e acessar o conhecimento? E o que mais contribui para reforçar essa imagem?
Carlos Eduardo Dias Machado: Eu entendo, pelas minhas pesquisas, que nós não fomos vistos como pessoas inteligentes, porque nossos ancestrais foram escravizados e foram explorados até a sua morte, a partir do Século XV. Inicialmente, levando essas pessoas, esses homens e mulheres, para o Sul de Portugal; e, posteriormente, transportando essas pessoas para aqui, para a América do Sul, para colônia portuguesa. Foi criado todo um imaginário, um discurso, toda uma narrativa, que defendia que os negros eram descendentes de Cá/Cam, um filho amaldiçoado por Noé. Essa maldição se estendia a todo continente africano. Então, justificaram essa escravidão pela interpretação da Bíblia, das religiões abraâmicas. Tudo começou aí. Eles nos desumanizaram. Falaram que nós éramos feios, éramos burros, que praticávamos uma religião demoníaca, que éramos mais força física, que qualquer outra coisa. Foram utilizados vários argumentos para isso. E, historicamente, acabando a escravidão, o estereótipo permaneceu. Essa marca permaneceu na população negra. E isso, com poucas exceções, ainda se mantém. Então, as pessoas negras são vistas como gente de má aparência, que não é bonita e que não é inteligente. E esse imaginário persiste, apesar de avanços. O racismo ainda permanece; e tanto brancos, quanto amarelos, continuam tendo esse preconceito positivo ─ podemos dizer assim ─ que eles são inteligentes e negros e indígenas não são colocados nesta classificação.
Existe uma explicação religiosa, cristã; originalmente, católica; e, posteriormente, protestante, que defendeu essa interpretação do primeiro livro da Bíblia, que é o Gênesis. Posteriormente, com o Iluminismo, alguns intelectuais iluministas começaram a propor que negros não eram humanos, que não tinham capacidade e que negros eram uma raça; e ao longo dos séculos, racistas tentaram provar cientificamente que negros eram inferiores – óbvio, que foram as pseudociências, mas que tiveram força até a metade do Século XX. E isso ainda permanece até os dias atuais. Apesar das mudanças, existem pessoas nas ciências que acreditam que existem raças na humanidade, mesmo estando provado que nós somos uma espécie só, e possuímos mais de 99% dos nossos genes semelhantes. Menos de 1% dos nossos genes está relacionado aos traços fenotípicos como a coloração da nossa pele, aos nossos traços físicos como cabelos, olhos, cor dos pelos, cor da pele, formato do nariz e formato dos lábios. Isso tem a ver com a adaptação, que a nossa espécie – o homo sapiens – teve ao se espalhar pelo planeta e se adaptar aos diversos climas do planeta. Entre 1,2 milhão de anos e 100 mil anos atrás, todos os ancestrais humanos tinham a pela escura. Então, é necessário rever essa narrativa que nos diminui, que nos desqualifica, e ela não tem fundamentação científica. É importante que se diga isso, cada vez mais. O racismo é uma questão de ignorância, mas não só ignorância. O fundamento do racismo é o privilégio, é a vantagem, é o acúmulo de recursos. É uma competição desigual por recursos, na qual as pessoas brancas têm se dado bem, têm se destacado, desde 1441.
WASH: Mas, ainda, nós sempre tivemos inúmeros exemplos de negros, que sempre buscaram estudar e acessar a academia/universidades. Esses mesmos personagens, também, eram embranquecidos? O que o seu livro traz sobre esse esforço de branqueamento?
Carlos Machado: O branqueamento fez com que pessoas importantes negras fossem embranquecidas. Um dos maiores exemplos é o de Machado de Assis. Muitas pessoas, hoje em dia, acham que ele era branco. Fizeram até um comercial, há anos, quando a Caixa Econômica completou 150 anos, em homenagem a ele, que tinha uma conta no banco. E, inicialmente, fizeram o Machado de Assis branco, mas o Movimento Negro insistiu e mostrou imagens que ele era negro. Foi um dos raros exemplos da História da Publicidade e Propaganda brasileira que o comercial foi refeito. Então, o embranquecimento entende que as pessoas negras não têm capacidade intelectual, apenas os brancos possuem essa capacidade. Então, eles procuraram embranquecer todas as figuras do Século XIX e início do Século XX, escritores e cientistas, que fossem negros. É por isso que muitas pessoas não sabem dessas informações, porque a Educação, os meios de comunicação e a mídia não ressaltaram isso – porque não é do interesse daqueles que detêm o poder falar que pessoas negras têm a mesma capacidade de pessoas brancas. Essa ideia de raça ainda persiste no imaginário das pessoas e ─ principalmente, pra aquelas que detêm o poder. Houve, sim, pessoas negras importantes que se destacaram na Academia, não só nos Séculos XXI, XX e XIX, por exemplo, e que têm sido no Século XXI ressaltadas a sua importância e sua negritude.
WASH: Quando e por que o Sr. decidiu se dedicar a essa pesquisa sobre a presença do negro na Ciência e Inovação e suas contribuições para a humanidade – Negras e negros, inventores, cientistas e pioneiros?
Carlos Machado: Tudo começou com uma propaganda que eu vi numa revista estadunidense, chamada Ebony. Eu morava em Diadema e trabalha em São Paulo, na Praça da República, em uma livraria, que vendia livros técnicos importados. Eu comecei a ter consciência da minha negritude aos 17 anos, em 1988, quando se lembrou o Centenário do Fim da Escravidão. Eu comecei a ler, a conversar com pessoas do Movimento Negro e a começar a entender todo esse processo, do qual nós passamos individualmente, familiarmente, coletivamente, diante da história do mundo. Então, eu queria comprar revistas, nas quais eu pudesse me ver, me projetar. Ver um homem negro que anda com um carro bonito, que tivesse uma casa bonita, que tem uma saúde boa, com amizades, se relacionando, estando em diversos lugares sociais; e eu consegui ver isso em revistas americanas. Ainda não existia a revista Raça Brasil, que estava sendo organizada. Então, em fevereiro de 1996, eu tive contato com essa propaganda. Nos Estados Unidos, o mês de fevereiro é o Mês da História Negra (Black History Month). Era uma propaganda de uma rede de fastfood, que tinha lá, “todos os dias você usa uma dessas coisas: a caixa de correio dos Estados Unidos, o pino de golfe, o filamento de carbono da lâmpada elétrica, a geladeira, o semáforo e a caneta tinteiro”. Todas essas invenções de pessoas negras. “Todos os dias você usa uma dessas coisas, você está celebrando a história negra”. Então, saber disso foi muito importante, porque, uma informação tão simples como essa, nunca antes tinha chegado até mim. Eu precisei comprar uma revista específica da comunidade africana-americana, para que eu pudesse ter contato com essas informações; porque, aqui, no Brasil, nunca veio fácil esse tipo de informações. E eu era uma pessoa informada, que procurava estar antenado com tudo que estava acontecendo, mas essa informação não chegou. Não chegou, por quê? Porque era estratégico ocultar essas informações, justamente, para não elevar a autoestima de pessoas negras. Eu comecei a perguntar a amigos e amigos, que nunca ouviram falar sobre isso, e isso me motivou em continuar pesquisando e verificar a quantidade de invenções, tecnologias e inovações de homens e mulheres, negros e negras, aqui, na América, na América Central, na América do Sul e nos países africanos. As informações não eram tão fáceis. Mesmo na Internet, quando buscava cientista negro, aparecia apenas como ficção científica. Hoje, é uma realidade bem diferente; mas, à época, as informações eram escassas e a divulgação científica era praticamente nula. Eu não sou o primeiro a escrever sobre o assunto. Quem já escreveu sobre o tema foi Nei Lopes, professor Henrique Cunha, Elisa Larkin Nascimento, que foi esposa do Senador Abdias do Nascimento. Mas, eu acredito que meu trabalho deu uma popularização ao tema.
Quais foram os seus principais achados e surpresas, neste estudo?
Carlos Machado: Foram invenções, que fazem parte do nosso dia a dia. Eu fiquei muito encantado com a geladeira, o semáforo, o pino de golfe, o filamento de carbono da lâmpada elétrica ─ que está presente em um monte de residências. Isso eu achei fantástico. E depois, com a ampliação da pesquisa, eu verifiquei que muitas coisas do nosso cotidiano são de origem africana. Nós temos a tábua de passar roupa, o interruptor de luz, a maçaneta, a chave da porta, que foi inventada em “Kemet”, a primeira civilização africana, que é conhecida como o Egito. Nós temos o vidro; a Matemática começou na África; a Química, a Astronomia, a Filosofia, o conceito de alma, de vida eterna, de julgamento dos mortos, o GPS, o uso de tecido de algodão, os pigmentos dos mais diversos, instrumentação cirúrgica, o entendimento de que o ano é dividido em 12 meses – 365 dias, e o mês tem geralmente 30 dias, o dia tem 24 horas. Tudo isso são observações feitas por pessoas negras e a quantidade de invenções é enorme. Isso me fascinou e continua me fascinando e me motivando a buscar cada vez mais.
É por isso que eu escrevo, faço artigos, dou palestras, dou cursos, e tenho sido chamado, o ano inteiro, para falar sobre este assunto e eu percebo que as pessoas têm gostado muito de saberem coisas que ficaram escondidas. E as pessoas também são curiosas e isso ajuda um pouco as pessoas a conhecerem um pouco mais, além do eurocentrismo, que ainda é dominante.
A nossa sociedade não costuma também reconhecer os negros, que se destacam nas mais diversas áreas, tratando-os, inclusive, como se fossem raras exceções. O Sr. poderia comentar isso?
Carlos Machado: Sim, com certeza, isso acontece. Eu me recordo, recentemente, de alguém comentando que o professor Milton Santos, que ganhou o Prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel da Geografia, pela sua obra, foi professor do Depto. de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), foi um cidadão do mundo, uma pessoa muito importante para a Geografia – ele falava assim: ‘a chefia do Depto, sempre quando vem uma delegação aqui para conhecer o nosso trabalho, me mostra como o negro que deu certo’. Eu cheguei a observá-lo, várias vezes, e ele se incomodava com esse tipo de tratamento e as discriminações que ele ainda sofria. Apesar de ser uma pessoa reconhecida internacionalmente, ele era uma exceção no Departamento. Isso acontece, também, em outros lugares. Tem uma professora do Depto. de Física, primeira PHD em Física, no Brasil, e ela leciona no ITA – Instituto de Tecnologia Aeronáutica, há mais de 20 anos. Sônia Guimarães é ela. E ela afirma que não é aceita pelos colegas, pelos funcionários do ITA, ligado ao Ministério da Defesa; e que muitos alunos se incomodam com ela. Mas ela é uma pessoa firme, decidida e continua na sua luta, na sua pesquisa, no seu trabalho de incentivar, cada vez mais, mulheres negras para a área da Ciência. Essa visão ainda permanece em diversos lugares. Isso é muito ruim, porque é muito ruim ser a exceção, que confirma a regra de exclusão. Os professores e professoras negras têm se deparado com essa realidade, em diversos departamentos de faculdades, espalhados pelo país inteiro. É uma visão de que essa pessoa deu certo, mas a maioria não dá certo. É muito triste tudo isso. Meu objetivo, meu sonho, é que cada vez mais pessoas negras sejam incentivadas a prestarem concursos para estudarem e entrarem em carreiras de Ciência, Tecnologia e Inovação; enfim, em todas as áreas. É importante também que as pessoas se vejam. Pra mim, foi muito importante, quando eu era mais novo, ter contato com o Movimento Negro, na FATEC, em São Paulo, e ver várias pessoas negras participando do Movimento Estudantil, nos anos 90. Eu ficava pensando se eles conseguiram entrar, por que eu não posso? Eles são parecidos comigo. Se eles conseguiram, eu também tenho capacidade. É muito bom quando a gente tem espelho, porque ajuda bastante a superar as barreiras.
Eu gostaria que o Sr. também comentasse a importância do espelhamento para ampliar esse espaço dos negros e negras na Ciência?
Carlos Machado: O espelhamento é fundamental. É importante que a gente se veja nos lugares de destaque, para que a gente possa fazer igual, fazer melhor ou ampliar a pesquisa. É importante ver pessoas negras na política, nos esportes, nas artes, na Biologia, na Química, na Gastronomia, na Geologia, na História, na Educação Física, em todas as áreas. Hoje, nós estamos vendo um número importante de alunos negros entrando nas faculdades, graças à luta do Movimento Negro, por ações afirmativas. Mas, é importante que eles vejam também professores, doutores e pós-doutores lecionando pra eles. Isso causa um impacto psicológico muito bom. É importante ver o negro nos produtos que nós consumimos no cotidiano, na propaganda de sabão em pó, do sabonete, da pasta de dente, na embalagem de álcool, entre outros produtos. É importante a gente se ver nas propagandas de TV, no Jornalismo, na Arte e na Teledramaturgia. Eu vou fazer 50 anos, em 25 de dezembro, e, na maior parte da minha vida, eu não tive essas referências positivas em todas as áreas. E, hoje em dia, graças a minha pesquisa também, eu tenho visto homens e mulheres negros astronautas, que me enchem de orgulho. Isso incentiva. A gente sabe que não é fácil, que nunca foi fácil. Existem muitas barreiras que o povo negro vê ─ e, é real ─ ao longo da sua vida. São muitos os percalços e muitos os perigos. E não é por acaso que a gente tem, a cada ano que passa, um número maior de jovens negros mortos pela Polícia Militar, nesta estrutura terrível institucional, que limita a nossa vida. É importante a gente ver outras possibilidades, para que a gente possa se ancorar e acreditar que é possível superar a nossa situação original de pobreza e miséria, que a supremacia branca nos colocou, ao longo dos séculos.
Existe um preconceito enorme em relação à questão que o negro prefere atuar nos esportes ou mesmo na vida cultural, porque nestas áreas a ascensão seria mais rápida – menos onerosa, como se a população negra não estivesse preparada para atuações mais intelectualizadas? Afinal, como a população negra vê a ciência e como a ciência tem visto a população negra?
Carlos Machado: Eu acredito que mesmo o esporte e a cultura não foram áreas mais fáceis para as pessoas negras entrarem, porque a nossa gente negra, sempre, foi estigmatizada, desde que chegou aqui, neste território. Eram possibilidades. É importante lembrar que a arte e a cultura são vitais para a nossa vida. Eu respiro arte todos os dias e o nosso povo milenarmente produz uma diversidade cultural imensa. O esporte faz parte de algumas pessoas, principalmente, o futebol, no Brasil. Crianças e adolescentes se imaginam sendo jogadores de futebol. Então, sinceramente, eu não sei se é mais fácil, mas é um caminho que várias pessoas negras já percorreram e existe um espelhamento muito bom nestas áreas: na música, no esporte – principalmente, no futebol. Não é que as pessoas negras não são preparadas. A nossa gente foi destituída. A nossa história começa antes da escravidão. A nossa gente tinha as mais diversas funções nos seus reinos e países de origem. Então, elas foram destituídas daquilo que faziam em seus países e tiveram que se adaptar a um padrão de produção muito diferente daquele que elas conheciam. Os nossos ancestrais tiveram que se adaptar a uma realidade muito cruel. E, na época do Brasil-Colônia (1500-1822), não houve interesse do governo português de trazer educação para essa população. Os dados do primeiro Censo, de 1872, mostram isso. Depois que o Brasil se tornou independente, em 1822, também não se investiu em educação para a população negra escravizada e para a população livre. Havia leis que impediam crianças negras de estarem na escola. Quando acabou a escravidão, não houve preocupação em oferecer cidadania a esta população, recém-saída deste sistema, que hoje é visto como crime contra a humanidade. A elite branca deste país se beneficiou enormemente. Eles acumularam riquezas de geração em geração. O Brasil é o segundo país mais rico do continente americano. Ele só perde para a superpotência, que é o EUA. É um país rico, mas desigual. O objetivo, aqui, não foi construir uma nação. A política pública foi para os imigrantes – europeus, na sua grande maioria; e asiáticos, no caso os japoneses. Preconceito positivo, pagamento de passagens, terras, facilidades para aquisição de terras; enfim, houve toda uma estrutura para beneficiar aqueles que estavam chegando do exterior; enquanto para os negros, aqui, não tinha isso. Eles foram retirados do trabalho, foram para as franjas do sistema, para as regiões mais distantes morar, foram para as periferias; e a grande maioria vive até hoje nas periferias. Então, a luta por cidadania, direitos iguais, por respeito, por dignidade, continua até hoje. Algumas famílias conseguiram se articular, se desenvolver; mas, outras, não. A maioria não conseguiu, porque não houve políticas públicas para elas. Graças ao Movimento Negro, existem políticas públicas em alguns casos, hoje. É muito difícil superar essas adversidades, sem apoio. O apoio é fundamental, para que a gente possa aumentar o número de jovens que queiram seguir carreira nas ciências. Esse é um desafio nosso. Eu entendo que o Brasil não é uma nação. Houve projetos, após o fim do tráfico transatlântico de seres humanos escravizados, para exterminar a população negra, inclusive com a miscigenação – a tão decantada miscigenação. Um cientista, no século passado, foi no Congresso Mundial das Raças, em 1911, em Londres, e levou uma tese “Sobre os Mestiços no Brasil” (em francês), e apresentou um quadro (de Modesto Brocos Y Gómes), que tinha uma mulher negra levantando as mãos para o céu, com sua filha ─ mais clara, que casou com um homem branco e a criança era branca. Eles acreditavam que, com a miscigenação, em 100 anos não existiriam mais negros ou indígenas no Brasil, porque a elite branca entendia que o progresso no Brasil estava prejudicado com a presença dessas populações. Esse imaginário, acredito eu, persiste. E, existe uma grande resistência às mudanças, para que a gente possa avançar, e ter nas oportunidades iguais para todas as pessoas, sem nenhuma distinção.
O racismo na ciência é o mesmo que o país vive em outras áreas?
Carlos Machado: Sim. A gente se destaca no esporte e na música. Agora, como engenheira, física, geógrafo, como médico, odontologistas e outras áreas, essa imagem do negro, na cabeça do racista, não se encaixa. Só que nós temos um histórico em todas as áreas da Ciência. Eu tenho feito um levantamento dessas tecnologias, inovações e ciências sobre a população negra. Para se ter uma ideia, o método científico nasceu na África, no Norte da África, na civilização conhecida como Kemet, que significa Terra Preta; e os gregos chamavam de Egito. O Papiro de Edwin Smith, cerca de 1600 a.C, com a descrição de doença, o tratamento possível ou não para determinados tipos de doenças. Então, a Ciência Moderna começa no continente africano. É importante que se diga isso, que se saiba disso, e que as pessoas assumam isso. Foi por causa disso que os cientistas ocidentais e a sociedade se esforçaram – até hoje – em provar que o Egito era uma civilização branca e não mostrar a agência negra tão importante para a humanidade.
Eu li em algum material que o Sr. teve dificuldades para editar seu livro. As editoras não se interessam pela história negra? Por que essa história teria dificuldade de ser acessada pelo público?
Carlos Machado: O meu livro, eu queria lançar numa editora que acreditasse no projeto, que desse um tratamento, que me auxiliasse na pesquisa, no sentido de ajudar em alguma imprecisão, para se fazer um livro de boa qualidade. Pensando na leitura e no leitor, eu queria um material de boa qualidade, que servisse de referência. O meu livro demorou 12 anos para sair. Eu escrevi em 2005 e, só em 2017, ele saiu. Ele já saiu pré-adolescente. Todos os nãos que eu ouvi, das mais diversas editoras, que eu enviei o projeto – das mais importantes às menores, eu ouvi que “o seu livro era acadêmico”, que “o seu livro não se encaixa na linha editorial”. “Quem vai ler este livro, só gente do Movimento Negro?” “Para lançar, aqui, tem que pagar”. Isso atrasou e demorou na edição. E, quando eu lancei, o livro foi um grande impacto. Foram 2 mil exemplares e se eu tivesse 20 mil exemplares, todos seriam vendidos, porque o assunto é urgente, é emergente. Uma parcela da população quer saber, quer ouvir, quer se aprofundar. Foi difícil, porque a maioria dos empresários brasileiros, que está estabelecida, é branca. São raros empresários brasileiros, destacados – não digo que não existem –; têm vários negros fazendo seu trabalho em diversas áreas, mas eles não têm créditos, não têm recursos bancários facilitados, linhas de créditos; e isso dificulta os negócios. A maioria das editoras é chefiada por homens brancos e eles não se sentem confortáveis em tratar esse tema. Tanto, que o próprio editor do meu livro falou para um funcionário, e chegou até a mim essa fala, que ele só conhecia jogadores de futebol e cantores negros em destaque, não, negros na Ciência. Ele topou o livro não porque acreditasse, mas pelo dinheiro.
O público recebeu muito bem o livro. Eu percebi nas palestras que as pessoas gostavam do tema, achavam interessante, fascinante. É obvio que tem gente que se incomoda, duvida, mas tudo que chegou como retorno foi positivo. Então, eu percebi que tinha mercado para esse assunto, por ser quase que inédito no país. A dificuldade de chegar ao público, portanto, foi nenhuma; mas, sim, vencer os preconceitos dos editores.
Essa sua pesquisa terá continuidade, o que o Sr. tem trabalhado recentemente?
Sim, a pesquisa continua. A cada dia que passa, a cada mês que passa, eu tenho conhecido mais inovações em todas as áreas: em Governança, Matemática, Ciências Sociais, Medicina etc. Eu tenho trabalhado e esse trabalho traz material para novas pesquisas. Eu pretendo continuar nesta pesquisa por muito tempo, se as divindades, assim, me permitirem.
Atualmente, ainda, são poucos os negros em cargos de liderança dentro do espaço acadêmico/científico. Como romper isso?
Carlos Machado: Eu acredito que precisamos continuar essa luta. Ações afirmativas para o ingresso de estudantes em universidades públicas; ações afirmativas para o acesso a bolsas de pós-graduação; começando na Iniciação Científica, passando pelo Mestrado e Doutorado; e ações afirmativas para professores e professoras em instituições públicas, com recorte étnico-racial. Nós precisamos entender que precisamos fazer justiça com uma população que foi historicamente discriminada, desumanizada e que não teve apoio estatal, que foi planejada a sua extinção no decorrer dos Séculos XX e XXI. Ações afirmativas começaram na Índia, na década de 40, depois que a Índia se tornou independente da Grã-Bretanha; foi para os Estados Unidos, nos anos 60; chegou na África do Sul, na segunda metade dos anos 90; e , no Brasil, no final dos anos 90, institucionalmente, falando. Começou a ser implantada a partir dos anos 2000. Portanto, é uma luta que vem do Movimento Social Negro, e, é necessário continuar essa luta para que exista equilíbrio. Nós somos 56,1% dos brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Somos 119 milhões de pessoas, num país que tem 212 milhões de habitantes. Não dá para continuar uma hegemonia branca nos departamentos de todas as áreas do conhecimento científico e pessoas negras serem minoria, em um país onde são maioria. É incrível que, muitas vezes, em algumas áreas, tenham mais amarelos/asiáticos, porque foram essas duas etnias que se beneficiaram desse sistema. Estatísticas mostram que os amarelos são os mais ricos e representam 2% da população; em segundo lugar, os brancos; em terceiro, a população negra; e em último lugar, a população indígena. Não dá para conviver com essa realidade, com esse apartamento e racismo institucional.
Entrevista concedida à Denise Pereira
Revisão: Nádia Abilel de Melo
Fotos: Arquivo pessoal de Carlos Eduardo Dias Machado


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