O cientista Marcelo Seluchi, do Cemaden, esclarece sobre as causas das chuvas intensas, neste ano.

 Ápice do Verão, Janeiro, historicamente, é o mês mais chuvoso e quente do ano. Em 2023, no entanto, o volume de chuvas, especialmente no Sudeste, foi acima da média histórica. Muitos municípios do Estado de São Paulo decretaram estado de emergência em função das fortes chuvas, que provocaram alagamentos, deslizamentos, quedas de árvores, e vítimas fatais.

Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) apontou que o Brasil deve sofrer, de forma geral, impactos negativos em decorrência do aquecimento global, com projetada redução significativa de chuvas na maior parte do território, tendência de aumento em outras áreas, desequilíbrio ecológico e repercussões sobre a biodiversidade, o meio ambiente, a produção de alimentos, a segurança e bem estar social, entre outros.

Para entender melhor as causas desse excesso de precipitação na região, a equipe de comunicação do Projeto WASH procurou o pesquisador Marcelo Seluchi, coordenador-geral de Operação e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), meteorologista especializado em previsões de curto prazo e referência nacional nessa questão.

Seluchi explicou que, entre outros fatores, as mudanças climáticas interferem diretamente no regime de chuvas, tanto causando tempestades extremas, quanto registrando períodos prolongados de seca. Mas, o cientista elencou que, para períodos mais curtos de tempo, outros fatores podem contribuir para o comportamento das chuvas, como, por exemplo, a atuação de sistemas meteorológicos como as frentes frias, as Zonas de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), a umidade e instabilidade do ar, e a atuação de fenômenos como La Niña e El Niño, entre outros. Segundo ele, uma questão sistemática do comportamento da chuva tem que ser explicada também por outra questão sistemática. E cita duas, em específico: o aumento da temperatura do planeta e a mudança do tipo de solo, pela retirada da vegetação nativa para implantação de cidades ou agropecuária. Confira a entrevista

WASH: Em algumas regiões brasileiras, como o Sudeste e, particularmente, o interior de São Paulo, o volume de chuvas neste mês de janeiro está acima da média histórica. Isso recorre das mudanças climáticas ou tem outros fatores envolvidos?

Marcelo Seluchi: As mudanças climáticas interferem no regime de chuvas, seja causando tempestades extremas, seja com períodos prolongados de seca. Temos uma série de dados confiáveis dos últimos 50, 60 anos. Sabemos, por exemplo, que a maior parte do Brasil está secando, com exceção da região Sul. As chuvas estão diminuindo nos últimos 50, 60 anos, conforme esses dados. Também, temos alguns indicativos que mostram que cidades como São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG), estão com a frequência de dias com chuvas acima de 80 mm – considerado chuva intensa -, e isto está aumentando nas últimas décadas. Isso é efeito das mudanças climáticas. A explicação por trás disso, em particular o aumento de dias de chuvas extremas, é que a umidade que a atmosfera consegue reter, o que chamamos água precipitável, ou seja, umidade que está na atmosfera e pode se tornar chuva, depende da temperatura do ar. Com o planeta aquecendo, independentemente da razão pela qual aquece, ele consegue guardar mais umidade. Quando algum sistema meteorológico provoca chuva, a atmosfera tem mais água precipitado para transformar em precipitação. O mesmo sistema meteorológico provoca, hoje, mais chuva que há 100 anos, simplesmente porque a temperatura aumentou.

Esse efeito é maior em lugares mais quentes. Um pequeno aumento da temperatura implica um maior aumento em latitudes tropicais que em latitudes altas. Esse efeito é maior em países como o Brasil, por exemplo, que no Alasca. Isso não significa, necessariamente, que as chuvas de janeiro têm relação, explicitamente, inexoravelmente com as mudanças climáticas. Têm vários aspectos que estão em jogo e podem, também, ser efeito das mudanças climáticas, porque a atmosfera retém mais umidade. Há 100, 200 anos, elas provocavam um valor menor de precipitação.

Mas, podemos explicar essas chuvas de janeiro, a partir de sistemas meteorológicos mais atuais. Nós registramos uma certa frequência de frentes frias desde o final do ano passado, as frentes frias de Verão. Não causam uma grande redução da temperatura, mas provocam tempo chuvoso, mantendo temperaturas baixas no Verão. Essas frentes tenderam a estacionar mais na região Sudeste, em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo. E, depois, quando essas frentes se dissipavam, formavam as ZCAS (Zonas de Convergência do Atlântico Sul). Tivemos uma sequência de frentes frias, relativamente altas, que estacionaram na região Sudeste e permitiram a formação de ZCAS, um sistema típico do Verão. Há anos que estão mais presentes, outros que estão menores, alguns anos são mais prolongadas, se estendem por mais dias, outros menos. Teve anos que não tivemos episódios de ZCAS. Este ano, tivemos e eles foram de mais longa duração. E por quê? Porque essas ZCAS aconteceram com outros fenômenos, que na meteorologia chamamos de sistema de bloqueio. Isso ocorre quando a atmosfera fica estagnada numa determinada situação, e esta situação foi justamente ZCAS na região Sudeste, com muita alta pressão no Sul do Brasil, no Rio Grande do Sul e países vizinhos, que sofreram com altas temperaturas e falta de chuvas. Essa situação, de alguma forma, ainda continua. Estamos no final de janeiro, e não está totalmente dissipada essa situação.

Por trás dessa frequência das frentes frias, do fenômeno de bloqueio e das ZCAS, está justamente o La Niña. Com o La Niña, normalmente, as frentes frias são mais intensas e mais frequentes, e o mesmo ocorre com os sistemas de bloqueio.  Essas chuvas de janeiro, mais que com as mudanças climáticas, são ligadas ao fenômeno La Niña.

WASH: No ano passado, também registramos, em algumas regiões, chuvas acima da média na Primavera. Qual a causa dessa antecipação das chuvas?

Marcelo Seluchi: As chuvas mais pesadas na Primavera foram por conta do La Niña. Como disse, durante o La Niña, as frentes frias passam com mais velocidade. Como elas passam muito rápidas pela região Sul, não dá tempo para chover. Às vezes, vem uma sequência muito rápida de frentes frias, que vai varrendo a umidade. Assim, fica muito seco, meio frio, sem tempo de chover. A chuva para valer vem justamente quando esta frente estaciona, como aconteceu em dezembro e janeiro. Na Primavera,também, tivemos essa sequência de frentes frias, mas nessa época já começa a ter um pouco mais de umidade. Então, a estação chuvosa se antecipou um pouco no ano passado, em algumas regiões. No ano passado, não tivemos temperaturas muito elevadas na Primavera, o que é típico da estação. No final da estação da seca, por agosto, setembro, até outubro, quando o solo está muito seco e o Sol com mais energia, normalmente temos temperaturas muito elevadas. Na região de São Paulo, a temperatura, às vezes, chega a 35°C. São pouco frequentes, mas normalmente ocorrem nessa época. Este ano, em particular, por conta das frentes frias mais frequentes e do La Niña, não tivemos temperaturas muito elevadas.

WASH: Até que ponto o desmatamento desenfreado da Amazônia reflete nas condições climáticas e no regime de chuvas?

Marcelo Seluchi: Sobre o desmatamento vou responder parcialmente porque eu não sou especialista. Mas, certamente, desmatar a Amazônia não é uma boa notícia, não é uma boa ação, e se tem um efeito, obviamente, é negativo. Voltando um pouco, temos o trabalho de uma colega do Cemaden que mostrou com dados, que a chuva nos últimos 60 anos estão decrescentes nas regiões Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste, ou seja, na maior parte do país. Ela só mostra o resultado, não faz juízo de mérito. Sendo um fenômeno que está perdurando por décadas, nós precisamos associar isso a algum tipo de fenômeno que também perdura por décadas, porque em meteorologia existe muita oscilação. El Niño e La Niña são oscilações, têm período chuvoso, alternando com períodos mais secos. Mas, qualquer oscilação, se pegar períodos muito longos, uma parte negativa deveria ser compensada por outra positiva. Isso que seria uma oscilação. No caso da precipitação o que se percebe não é tanto uma oscilação senão uma tendência negativa. Então, diria que uma questão sistemática da chuva tem que ser explicada também por outra questão sistemática. Conheço duas muito claras: o aumento da temperatura do planeta e a mudança do tipo de solo, e aí entra, também, o desmatamento.

O Brasil foi mudando o tipo de uso do solo, tirando vegetação nativa para a construção de cidades e, fundamentalmente, para a agropecuária. Não é possível colocar uma causa efeito, mas coincidentemente as duas coisas parecem estar caminhando juntas, pelo menos na observação.

WASH: Há previsão de retorno do El Niño em 2023?

Marcelo Seluchi: Há uma certa expectativa do retorno do fenômeno El Niño para a segunda metade de 2023. Têm vários modelos que estão indicando uma probabilidade, mas é, ainda, prematuro afirmar, porque estamos falando dos meses da Primavera em diante. Esses modelos podem falhar, também. No ano passado, por exemplo, foi dito que o La Niña iria se dissipar, se encerrar, e isso não aconteceu. Parece que o fenômeno está encerrando agora nos próximos meses, fevereiro, março, talvez. Existe essa possibilidade do El Niño, mas é, ainda, prematuro dizer com que intensidade e com qual duração. O que normalmente ocorre durante o ano do El Niño é exatamente o oposto ao que acontece com o La Niña.

WASH: Que reflexos climáticos esses fenômenos acarretam?

Marcelo Seluchi: O El Niño costuma gerar chuvas acima da média na região Sul. Durante o La Niña, as frentes frias passam muito rápido pela região Sul e, por isso, chove mais ao Norte, e não no Sul. Já no ano do El Niño acontece o contrário, as frentes frias tendem a ficar estacionárias sobre a região Sul, então chove constantemente, o solo fica muito úmido, muito instável. Com isso, qualquer alteração meteorológica, qualquer frente, é suficiente para fazer chover, e essas frentes gostam de se posicionar na Bacia do Prata (se estende pelo Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Argentina) nos anos do El Niño. Ao contrário dos de La Niña, os anos do El Niño são mais quentes, justamente porque as frentes frias não passam. Assim, Invernos associados ao El Niño, na região Sudeste, costumam ser mais quentes e durante o La Niña são mais frios.

WASH: No que consistem, exatamente, os dois fenômenos?

Marcelo Setuchi: O El Niño consiste no aquecimento das águas do Oceano Pacífico Central. Esse aquecimento altera a pressão atmosférica. Essa alteração, altera os ventos, que alteram o sistema meteorológico, e por aí vai. É um efeito em cadeia. Esses ventos favorecem o aquecimento das águas, e isso favorece a mudança nos ventos. Um fenômeno acoplado em que a gente não sabe o que vem primeiro – o ovo ou a galinha. Os dois aparecem juntos, mas um efeito reforça o outro. Por isso o El Niño é um fenômeno que costuma durar bastante tempo.

O La Niña é exatamente o oposto, as águas do Pacífico Central esfriam, o que muda a pressão atmosférica e os ventos no sentido oposto ao do El Niño. É um tanto técnico explicar os detalhes de cada fenômeno, mas o ponto é este. Durante o El Niño, aqui no Brasil, costuma chover mais no Sul, com Inverno mais fraco porque as frentes frias ficam retidas na região Sul. No La Niña é o contrário. Elas passam rápido. Já tivemos até um caso de geada em novembro passado. No mesmo mês, uma frente fria chegou à Venezuela, coisas típicas de anos do La Niña.

WASH: Como o senhor avalia as pesquisas meteorológicas realizadas no Brasil?

Marcelo Setuchi: A importância das pesquisas é fundamental. Estamos falando de ciência e tecnologia. Eu sou suspeito, porque sou cientista, mas o mundo avança graças a ciência e a tecnologia. Tudo que nós temos, tudo que usamos é produto de algo que alguém inventou. Para inovar precisa, de alguma forma, de ciência por trás, desde que o homem existe. Começou com o fogo, a roda, e assim por diante. Essas pesquisas vão nesse sentido, de você, primeiro, entender o que está acontecendo. Entender para prever e prever para prevenir, para se proteger. Enfim, para mitigar os efeitos, a pesquisa é fundamental, é importantíssima.

E o Brasil tem um papel muito importante nesse cenário, tanto em quantidade como em qualidade de trabalhos, participação em fóruns internacionais e no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês). O Brasil, sem dúvida, pela quantidade e qualidade de seus cientistas, é uma referência na América do Sul e no mundo.

WASH: O que pode ser feito para amenizar os efeitos das mudanças climáticas?

Marcelo Setuchi: O que pode ser feito a gente já sabe. Há que evitar continuar com tudo que contribui para as mudanças climáticas. A emissão de gases de efeito estufa, as queimadas, o desmatamento, o uso de carros, as energias sujas… tudo isso contribui. Só que é uma decisão difícil, que precisa de consenso, de políticas tendentes para isso. Os países precisam decidir, mas as pessoas precisam abraçar essa questão. As pessoas podem fazer a sua parte. Não custa nada jogar o lixo corretamente; às vezes, evitar desmatamento, usar um combustível mais amigável para o meio ambiente. Enfim, é um compromisso que a humanidade deveria assumir. Não é simples, me coloco até como exemplo. Venho todo dia trabalhar de carro particular – uma pessoa, um carro, é péssimo. Mas, não tem transporte público, pela distância é impossível vir de bicicleta, não há outra possibilidade. De todo modo, a pessoa tem que fazer um esforço, às vezes deixar de lado seu conforto para assumir um compromisso com o meio ambiente.  Mas, também, é preciso ter as possibilidades, os governos precisam investir mais, dar condições para que as pessoas também ajudem.

Redação: Delma Medeiros