A física espacial Ale Pacini fala sobre seu trabalho na iniciativa das Nações Unidas #Space4Women e sobre o Girls InSpace

Alessandra Pacini é física pelo Mackenzie (SP), com mestrado e doutorado em Geofísica Espacial no INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial) e doutorado em Física Espacial pela Universidade de Oulo, Finlândia. Escritora de livros sobre ciências espaciais para crianças, em especial meninas, e também YouTuber, Ale é mentora da rede das Nações Unidas #Space4Women. Esta iniciativa busca ampliar o papel das mulheres na indústria espacial, em relação direta com as 17 metas de desenvolvimento sustentável para 2030. Entre elas, está a igualdade de gênero. Dados da ONU apontam que menos de um terço dos cientistas no mundo são mulheres.

Ale Pacini. Arquivo.

Conhecida como Ale Pacini, a cientista está, ainda, à frente do projeto Girls InSpace nas Escolas, desenvolvido em apoio ao programa #Space4Women e que envolve a capacitação de professores de Ciências em temas sobre Terra e Universo comuns à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e aos livros da coleção Girls InSpace. Este projeto foi especialmente preparado por cientistas e educadoras, num formato inédito e inspirador. 

Ela vive nos Estados Unidos desde 2016, onde trabalha em institutos de pesquisa e observatórios como Applied Physics Lab, NASA/Goddard e Observatório de Arecibo. 

Casada, mãe de dois e blogueira do O que diz a física, em entrevista ao Programa WASH, ela fala sobre sua carreira, projetos e inspira os estudantes a perseguir carreiras científicas.

Tem espaço para todo mundo no espaço”

Bárbara Beraquet: Carreiras e profissões na indústria espacial parecem ser algo tão distante de nós. Quais existem nessa área?

Ale Pacini: Isso é interessante porque muita gente, quando pensa em espaço, pensa em um astrônomo, num telescópio gigante, bem longe do Brasil… Nem sabe que temos esses telescópios no Brasil, também. Ou imagina um cientista maluco! Mas a verdade é que a tecnologia espacial está no nosso dia a dia. Está no seu telefone celular, no GPS que você usa. Qualquer sinal de satélite que venha para você envolveu toda essa tecnologia espacial e muitos profissionais da área.

Gosto de citar carreiras que não são usuais. Eu sou física espacial. Trabalho fazendo pesquisa na área em torno da Terra, na física do que chamamos de heliosfera, que envolve tudo que acontece entre o Sol e a Terra, aqui até em volta do Sistema Solar. 

Existem trabalhadores nessa área que atuam mais no desenvolvimento da tecnologia que vai para satélites, por exemplo, na análise desses dados, como o pessoal da computação que trabalha com Big Data (conjuntos de dados grandes e complexos), que é muito usado. Se pensarmos na parte de exploração espacial que agora está em voga, estamos com o projeto Artemis, que colocará a primeira mulher na Lua, em 2024, provavelmente, e, depois, vamos caminhar com uma exploração para mandar uma civilização a Marte. Vamos precisar de todos os profissionais, na verdade. Isso envolve muito a área da diplomacia internacional – há muitos advogados na área espacial. Hoje em dia, precisamos de médicos entendendo o que acontece com a fisiologia humana no espaço, o que acontece com o nosso DNA, com nosso corpo. Chefes de cozinha e o pessoal da área alimentar têm que desenvolver alimentos para serem consumidos e preparados no espaço. Tem espaço para todo mundo no espaço.

Uma área bem interessante é a arquitetura espacial, para desenvolver esses habitats fora da Terra. Há o pessoal da geologia, o pessoal da mineralogia, que estuda todas as rochas e elementos de outros planetas, asteroides e da Lua. Há muita coisa para fazer no espaço e precisamos de trabalhadores de todas as áreas. 

Bárbara Beraquet: Você fala sobre a vastidão de possibilidades e ocupações  existentes e para as quais as crianças de hoje, que irão crescer, devem já estar se preparando para ocupar. Estamos, contudo, num momento delicado da Pandemia, no mundo inteiro, e isso impacta também na questão da educação das crianças e dos jovens. Como podemos, ainda assim, continuar a estimulá-los a descobrir a Ciência?

Ale Pacini: Agora, mais do que nunca, acredito que o espaço pode ter esse papel de manter as crianças engajadas numa leitura, no estudo. Porque elas estão muitas vezes sem orientação, porque não estão tendo mais o contato do dia a dia com os professores e os colegas, em sala de aula. No Brasil, não podemos considerar que temos inclusão digital em uma esfera federal. Muitos alunos estão sem aula, mesmo, há mais de um ano, o que é muito difícil de conseguir suprir.

O que conseguimos fazer, sendo o espaço uma coisa muito inspiradora – conseguimos olhar para o céu de qualquer lugar que nós estejamos –  dentro da nossa casa, é tentar despertar esse interesse das crianças e a curiosidade pelos fenômenos espaciais. Ver um arco-íris aqui, uma nuvem mais rosa ali, tudo isso puxa um gancho da área espacial para explicarmos sobre atmosfera, nuvens, interação com o Sol. Sem falarmos da noite cheia de estrelas: com uma estrela cadente, você explica um meteoro. Há várias coisas que podemos fazer dentro de casa que utilizam o céu como gancho para manter as crianças engajadas em estudar. Tudo o que eu disse é focado na área científica, mas isso puxa outras questões. Você pode pedir para a criança escrever um poema sobre o que ela leu, sobre o que ela viu; ler um livro sobre o assunto, falar da química das estrelas. Com o espaço, você consegue puxar um gancho para todas as disciplinas e, talvez, estimular e manter essa criança inspirada a continuar estudando, mesmo dentro dessas condições adversas que encaramos hoje.

Bárbara Beraquet: As crianças são curiosas por natureza. Você tem e eu tenho filhos. Temos crianças e fomos crianças. Os meus se encantam com as estrelas cadentes e me lembro também de ser criança e de gostar de ler sobre fenômenos meteorológicos, sobre como se formam as cumulus nimbus, e sobre como se forma o nosso Sistema Solar… Era uma literatura que me acalmava. Logo, descobri Philip K. Dick, que se tornou um dos meus autores favoritos, toda a literatura de ficção científica e novos mundos e mundos possíveis. Mas, crescendo, na escola, não era algo que nos era falado, sobre as carreiras, além da medicina convencional, engenharia civil, advocacia, por exemplo. Aí você vem com uma série de livros que são as Girls InSpace e mostra para as meninas que a Ciência faz parte e pode fazer parte da vida delas.

Gostaria que você nos falasse um pouco sobre seus livros e como tem sido a recepção das meninas para a série e para esse tipo de literatura.

Ale Pacini: Tenho três livros publicados da coleção Girls InSpace. O primeiro é “A luneta e Isabelle”. São todos ilustrados e têm a personagem da Doutora Lindy,  inspirada em uma cientista espacial chamada Jocelyn Bell, que traz informações adicionais nas histórias. As histórias são sobre um grupo de amigas que, de acordo com as aventuras e do livro, têm uma idade crescente.

São um grupinho de amigas e cada criança deste grupo foi inspirada numa criança real que passou e que ainda está em minha vida. Todas vão aprendendo sobre o espaço e Ciências da Terra ao longo da história, mas não é um livro-texto, é um livro feito justamente para entregar um pouco de referência, para que as meninas olhem para frente e vejam uma cientista de verdade adiante. Sou cientista e escrevi esses livros – o que já é uma referência, mas pedi também para que amigas minhas, pesquisadoras, fizessem a introdução. No primeiro livro, há a abertura da Doutora Adriana Vale, que é uma astrônoma brasileira maravilhosa. No segundo livro (Hélio: o 1º amor de Ceci), uma cientista da África do Sul (Zama Katamzi-Joseph) conta sua história; este mais voltado para o Sol e Clima Espacial.

O terceiro livro (O bisavô cósmico de Lélis e Lola) tem como tema central as descobertas científicas e a questão dos raios cósmicos com a abertura da doutora Georgia De Nolfo, amiga pesquisadora da NASA, nos Estados Unidos. 

A série de livros traz as histórias, informações científicas e, além disso, as referências femininas na Ciência, para que as crianças tenham a possibilidade de conhecer a vida de um cientista, entender o que fazemos.

Realmente, na nossa época pouco víamos sobre esses conteúdos na escola. Em geral, víamos algo sobre o Sistema Solar, mas que parecia muito desconectado do nosso dia a dia. Hoje em dia, a novidade boa é que a nossa nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) inclui uma parte forte de eixo Terra e Universo no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Estes conteúdos incluem também a tecnologia espacial, com foco maior nas interações do Sol, da Terra, na questão atmosférica e da circulação global atmosférica. Considero o conteúdo de agora muito mais forte nesses tópicos e muito capaz de inspirar as crianças, algo que não tivemos na nossa época.

Uma das dificuldades que se tem hoje em dia, porém, é que os professores dessas faixas, principalmente do Fundamental, em geral vêm da Biologia e nem todos tiveram um treinamento muito forte nesse eixo Terra e Universo. Uma das atividades que realizamos com o livro dentro dessa abordagem do programa da ONU do qual sou mentora, o  #Space4Women, foi utilizar meu primeiro livro para capacitar professores do Fundamental II a trazerem esses conteúdos de forma mais apaixonada, porque ainda não há nada que substitua essa interação professor-aluno .

Quando se aprende um conteúdo novo através de uma pessoa apaixonada pelo tema, com aquele brilho no olhar, isso impacta muito mais a criança e é muito mais provável que ela tenha o interesse contínuo, a partir dali, sobre o tópico abordado.

O ano passado, o primeiro da Pandemia, exigiu um grande esforço. Me uni a duas amigas maravilhosas, a professora Rafa Lima, do canal Mais Ciências, no YouTube, e a astrofísica Patrícia Cruz. Nós três desenvolvemos essa capacitação para professores. 

Capacitamos professoras do Brasil inteiro e foi muito muito especial; também pude conversar com os professores sobre quais são as necessidades, o que de fato é possível que seja feito dentro de sala de aula, e cada uma das professoras trouxe a realidade do seu município e as dificuldades para engajar os alunos nesse momento de pandemia. Todas desenvolveram planos de aula em torno do conteúdo e esses planos serão publicados em um e-book de forma pública e gratuita para que outros professores utilizem. Isso para termos a multiplicação do impacto. 

Não tem como se falar em impactar crianças e adolescentes nessas faixas escolares sem falar do professor, porque a escola é esse ambiente de potência, onde passamos grande parte do tempo e potencializamos os nossos interesses, e onde encontramos quem somos.

De forma mais direta, tenho feito um clube do livro, também dentro desse projeto do #Space4Women e com o apoio institucional da Agência Espacial (AEB), com um grupo de quase 100 meninas. As meninas estão super empolgadas, seus feedbacks e de seus pais têm sido muito gratificantes. Meu intuito era trazer conteúdo de qualidade que engajasse as meninas a permanecerem lendo, mas, também, que tirasse um pouco a cabeça das nossas crianças desse momento tão pesado, tão triste, principalmente no Brasil, com uma pandemia tão desproporcional e que afeta todas as famílias. As meninas têm tirado a cabeça desse sofrimento e colocado a mente nas estrelas, deixando fluir a imaginação. É um pouco de alívio que temos promovido. O espaço é muito importante para trazer esse alento para nosso coração, para pensarmos um pouco além da nossa realidade, da nossa “caixinha”, e expandir a mente e os horizontes dessas meninas.

Bárbara Beraquet: O #Space 4Women é uma iniciativa das Nações Unidas para valorizar o papel das mulheres na indústria espacial. Fale-nos sobre o projeto. Como é seu trabalho de mentoria? Já tem resultados?

Ale Pacini: As conversas sobre essa rede começaram em 2017, dentro do escritório das Nações Unidas para assuntos do espaço exterior (UNOOSA).

Chamamos “espaço exterior” porque é um espaço que é de todos, não existe poder de Estado sobre ele – seu país pode controlar seu espaço aéreo, mas o espaço exterior pertence a todos e os benefícios que vem do espaço exterior têm, também que ser distribuídos para todos.

É um esforço das Nações Unidas tentar promover ações que sejam alinhadas com a agenda 2030 do desenvolvimento sustentável, proposta para que atinjamos até 2030 e que consigamos consertar erros que temos como sociedade, para termos de fato uma sociedade pacífica, próspera e sustentável. Um dos objetivos é a igualdade de gênero, da equidade. Dentro da UNOOSA, temos pessoas que trabalham em diferentes profissões, não só nas carreiras científicas, mas também todas essas outras questões que envolvem o espaço, e temos conversado sobre isso e sobre como alinhar nossas atividades para ajudar a agenda 2030 e promover todos os objetivos do desenvolvimento sustentável dentro das nossas carreiras e dentro do nosso nicho.

Conversamos sobre a criação de uma rede que não apenas estimulasse meninas a entrarem para essas carreiras – e é bem importante destacar a importância do espaço, aqui, para que a gente engaje crianças nas carreiras que chamamos em STEM – Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, porque pagam muito mais e é onde estão bons salários, em geral, mas porque são carreiras que demandam habilidades que serão exigidas em mais de 90% das carreiras do futuro. De acordo com a Unesco, mais de 90% dos trabalhos do futuro exigirão habilidades de STEM. Daí a importância de estimular as crianças a irem para essas áreas, para o setor espacial, especificamente, na área de engenharia espacial, na construção de satélites, análise de dados, desenvolvimento de software, nesta última, somos (mulheres) uma minoria muito gritante.

Já se tem algumas estatísticas mundiais de que as pesquisadoras, por exemplo, nas ciências, em geral, correspondem a 30% dos cientistas. Na área de desenvolvimento tecnológico e da física, esse número cai ainda mais. 

Um dos trabalhos dessa plataforma criada pela ONU é estimular meninas a entrar nesse setor, mas o outro componente é também promover e tornar possível o trabalho daquelas que já se encontram no setor espacial. Primeiro, somos ainda muito invisíveis neste setor. Quando as pessoas criam painéis, por exemplo, para discutir qualquer assunto, é muito comum que você veja um painel formado por homens brancos. Não há diversidade, nem nenhuma representatividade de outros grupos que são grupos sub-representados na área. Não há mulheres, mas também não há negros. Você não tem uma diversidade de gênero ou étnico-racial. Um dos papéis dessa rede é, justamente, começar a resolver e endereçar esse problema para abordar e buscar uma solução.

Com esses meus projetos dos livros, comecei a divulgar a ideia do projeto em reuniões da minha área de clima espacial, reuniões científicas e, numa delas, a ONU tomou conhecimento do meu projeto. Viram que ele estava em consonância com a agenda 2030, porque briga pela igualdade de gênero e oferece conteúdos de educação de qualidade.

Comecei a me envolver e nos organizamos em 2020. Assim, no dia 11 de fevereiro, Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência, a UNOOSA lançou essa plataforma, com 35 mentoras dessa primeira rede – e fui uma das mentoras nomeadas.

Nosso papel, ali, era promover a plataforma e estimular meninas, que é algo que eu já vinha fazendo com os meus livros. A maioria das mentoras escolhidas também já vinha trabalhando nessa questão. Tivemos um ano para tentar formatar melhor qual seria o papel das mentoras e dos mentores, porque não serão apenas mulheres daqui para a frente.

Fui nomeada novamente e sigo como mentora nessa rede até 2022, ao menos. 

Temos uma rede em paralelo apenas das participantes da #Space4Women e nós estamos crescendo. Não sou a única brasileira; temos mais duas na rede: a doutora Thais Russomano, médica espacial que trabalha na Europa, pesquisadora e que é uma das pioneiras dessa área no Brasil e a outra mentora é a doutora Ana Galego Rosa, advogada espacial que desenvolve trabalhos como para a utilização da tecnologia espacial no monitoramento de regiões quanto ao desenvolvimento de dengue, por exemplo. Há várias utilizações da tecnologia espacial sobre as quais não se tem muita informação para o público geral, mas tudo em nossas vidas, hoje em dia, passa por isso, desde monitoramento ambiental para cuidar dos recursos hídricos e recursos florestais, até a parte imobiliária, para decidir impostos. Tudo isso envolve tecnologia espacial e utilização de imagem de satélite, bem como o processamento desses dados e a Inteligência Artificial. Haverá muito trabalho aí para a nova geração, sem falar na parte científica. Vimos o robô Perseverence chegar à Marte, que foi até lá para coletar amostras, mas ele não as trará agora. Uma outra missão buscará as amostras que o robô está coletando e quem analisará essas amostras é a nova geração de cientistas, não será a minha geração.

Precisamos ter uma diversidade e uma grande representatividade de meninas e de outros grupos sub-representados nessas carreiras espaciais, para que consigamos fazer uma análise plural e rica de vários ângulos, perspectivas e backgrounds. Por isso, estamos lutando para que a igualdade seja atingida antes de 2030.

Para seguir Ale Pacini nas redes sociais, o canal do YouTube é “O Que Diz a Física”.

No insta, o perfil é @ale.a.pacini.

A entrevista completa pode ser acessada em três partes. Na primeira, Ale fala sobre carreiras e profissões na Indústria Espacial e Girls InSpace.

Na segunda, o tema é #Space4Women nas Nações Unidas e habilidades em STEM.

A terceira parte é reservada para as perguntas das clubistas do projeto Meninas nas Exatas: No Vale elas fazem Ciência, parceiro do Programa WASH. 

Redação: Bárbara Beraquet

Revisão Nádia Abilel de Melo