Sistema eletrônico de votação, adotado oficialmente no País em 1996, evita fraudes e agiliza o processo de apuração
O Dia do Inventor é lembrado no Brasil em 4 de novembro. Em geral, um cientista curioso que encontra soluções inusitadas e inovadoras para facilitar a vida da humanidade. A começar pela descoberta do fogo e pela invenção da roda, ainda na era pré-história, os inventores são responsáveis por inovações que, ao longo dos séculos, garantem mais qualidade de vida às pessoas de todo o planeta. Da simples escova de dentes às superpotentes naves espaciais, praticamente todos os objetos utilizados em nosso dia a dia, foram descobertos ou criados por inventores que souberam explorar as possibilidades que o universo apresenta.
Em comemoração ao Dia do Inventor, o Projeto WASH destaca um invento que revolucionou o processo eleitoral brasileiro e que está na ordem do dia, em função das recentes eleições: a urna eletrônica, equipamento que trouxe eficiência, agilidade e segurança ao processo eleitoral.
Para falar dos primórdios desse invento, a equipe do Projeto WASH conversou com a física, Alaide Pellegrini Mammana, que coordenou os estudos iniciais para a criação de um sistema eletrônico de votação, o primeiro passo para a criação da urna eletrônica como conhecemos atualmente.
Alaide Mammana é física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Engenharia Nuclear (USP/IEA/CNEN) e doutora em Ciências pela Escola Politécnica da USP. Foi pesquisadora do Instituto de Energia Atômica, em São Paulo (1963 – 1966), onde chefiou o Serviço de Eletrônica. Foi docente do Instituto de Física da USP (IFUSP) e da Faculdade de Engenharia Elétrica da Unicamp, tendo se aposentado como Professora Titular. É diretora do Capítulo Latino-Americano da Society for Information Display (SID), presidiu e continua como pesquisadora da Associação Brasileira de Informática (Abinfo), e membro de seu Conselho de Administração. A Abinfo, atualmente, é presidida pelo professor doutor Carlos Ignacio Zamitti Mammana. Confira a entrevista.
WASH: Professora, a senhora coordenou os primeiros estudos para implantação do voto eletrônico, principal instrumento para garantir eleições seguras no país. Conte como foi esse processo?
Alaíde: A história começou na década de 70, com a investigação de filmes finos de óxidos de estanho e de índio para diversas aplicações, por exemplo, para células solares de heterojunções de óxido/silício. Contávamos com a cooperação do pai das heterojunções, professor doutor Richard Louis Anderson, da Universidade de Vermont, nos Estados Unidos, que periodicamente vinha ao Laboratório de Eletrônica e Dispositivos (LED) da Unicamp e depois ao Instituto de Microeletrônica do Centro Tecnológico para Informática IM/CTI, então dirigidos pelo professor doutor Carlos Mammana.
Migrar para os displays e para as telas de toque foi natural graças ao sucesso alcançado na obtenção de filmes finos destes óxidos com alta transparência e alta condutividade elétrica sobre vidro, os chamados vidros condutores.
Foi então que Victor e Guilherme, meus filhos, estudantes secundaristas, por ouvir a mãe enaltecer o dióxido de estanho (SnO²) como um material maravilhoso, resolveram utilizar uma pequena placa deste vidro condutor para inventar um dispositivo (joystick) para comandar jogos eletrônicos com o simples deslizar de um dedo. Um avanço importante para a época, que contou em seu desenvolvimento com a colaboração do estudante de Física, Roberto Ribeiro Pereira, à época meu aluno de iniciação científica.
WASH:– Como isso se desenvolveu?
Alaide: A evolução para uma tela de toque de maior área foi proposta por Victor para atender demanda da Prof. Dra. Ana Maria Pellegrini, Profa. Titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Rio Claro), especialista em aprendizado motor. Para capturar dados de movimentos, a Profa. Ana Maria projetava, com um semiespelho, a imagem exibida numa TV (ou monitor) sobre uma mesa digitalizadora, na qual media distâncias, ângulos e velocidades, objetos de sua pesquisa. Para substituir esta montagem complicada e desconfortável, Victor desenvolveu uma alternativa mais simples, eficiente e barata, constituída por um tablete de vidro condutor posicionado diretamente sobre a tela da TV, operado com um apontador.
Este tablete foi objeto de patente internacional – (Transparent tablete for evaluation of motor responses e US 6.954.078 e WO/2003/014672). O desenvolvimento de uma tela tocada por dedo (touch screen) foi um avanço natural, aproveitando a experiência anterior do joystick. Este desenvolvimento foi realizado no LMI/CTI com a participação da Abinfo, com apoio do Prof. Dr. Carlos Ignacio Zamitti Mammana, diretor do IM/CTI.
WASH: Para quais fins era usado esse projeto?
Alaide: Os primeiros sistemas operados com telas de toque foram desenvolvidos para aplicações na educação, na educação especial, no lazer (jogos) e no esporte (registro de faltas, chutes a gol etc). Destaque deve ser dado às aplicações para crianças com paralisia cerebral, e com dislexia, em que programas computacionais específicos tinham que ser desenvolvidos para cada indivíduo.
As telas despertaram o interesse de pesquisadores da área de Psicologia Experimental, tendo nos procurado professores da Universidade São Paulo (USP), da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, que investigavam relações de equivalência e questões relacionadas. Para atendê-los, desenvolvemos telas de toque e software dedicado às aplicações. O Prof. Dr. Fernando César Capovilla, do Instituto de Psicologia da USP, estendeu sua pesquisa ao uso de sistemas computacionais para comunicação alternativa de pessoas com deficiência. Essa aplicação motivou, inclusive, o desenvolvimento de uma tela operada por sopro e respectivo software para um paciente paraplégico que, impossibilitado de se movimentar, só conseguia respirar.
WASH: A partir daí, como o projeto evoluiu?
Alaide: Por ser intuitiva, simples, fácil de usar, versátil e de baixo custo, a tela de toque tornou-se muito atrativa para várias aplicações, tendo inclusive motivado o desenvolvimento de outra inovação – a carteira escolar informatizada – que despertou grande interesse no país e no exterior. Este invento foi objeto de pedidos de patente no país (“Mesa de trabalho informatizada para fins educacionais” – INPI PI 0705367-3) e no exterior (“Computerized school desk” – USPTO US 20100307382 A1).
WASH:– Como a tela chegou à política?
Alaide: Vislumbrando que o desenvolvimento de um sistema de eleição eletrônico poderia trazer enormes benefícios ao processo de votação e de apuração nas eleições, pois aumentaria sua eficiência, segurança e reduziria seus custos, sabíamos que o uso da tela de toque acrescentaria vantagens ainda maiores ao tornar o ato de votar intuitivo, simples, eficiente e seguro.
Fizemos contato com o Juiz Eleitoral Vladimir Valler, que se entusiasmou com a possibilidade de demonstrar o sistema de eleição em Campinas. Apesar da proximidade do segundo turno para a eleição do governador, que ocorreria em 25 de novembro de 1990, aceitamos o desafio de demonstrar o sistema de votação em quatro seções eleitorais de Campinas, conforme proposto pelo Juiz Valler.
WASH: O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) afirma que o processo de desenvolvimento da urna eletrônica começou em 1995, mas foi bem antes, então?
Alaide: A partir desta decisão, no prazo curtíssimo disponível, as equipes do IM/CTI e da Abinfo empenharam-se no desenvolvimento do sistema de eleição concebido de forma a reproduzir o processo de votação adotado no país conforme estabelecido no Código Eleitoral. Empregando microcomputadores pessoais de baixo custo (PC-XT de 640 kbytes), o sistema era operado com uma tela de toque especialmente desenvolvida e construída para a aplicação. Este sistema foi objeto do Pedido de Garantia de Prioridade depositado no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) – número PI 9006074 A2-1 em 23/11/1990 -, sob a denominação de “Sistema de pesquisa de opinião e escrutínio”.
Complementava o sistema uma unidade de leitura de código de barras para identificação e registro dos eleitores, também especialmente desenvolvidos e construídos para a demonstração.
Todo o software do sistema foi projetado com recursos avançados de engenharia de software, empregando técnicas criptográficas de forma a torná-lo seguro e imune a fraudes. O Sistema Informatizado de Eleição foi demonstrado no 2° turno das eleições para governador, em 25 de novembro de 1990, nas Seções Eleitorais 51, 52, 53 e 54 da 275ª Zona Eleitoral de Campinas.
É importante mencionar que o desenvolvimento do sistema de eleição e sua demonstração só foram possíveis graças a agregação de competências em diversas áreas.
WASH:– Em quanto tempo foi realizado o desenvolvimento do sistema de eleição?
Alaide: Todo esse desenvolvimento foi feito no prazo curtíssimo de cerca de 20 dias e envolveu não só as equipes do LMI/CTI e da Abinfo, mas também profissionais de empresas associadas da Abinfo (Splice e CIS Eletrônica). O desenvolvimento do software foi liderado pela Profa. Silvia Helena Machado de Oliveira, do Departamento de Ciências da Computação do Instituto de Matemática, Estatística e Ciências da Computação (IMECC/Unicamp) que, à época, era pesquisadora colaboradora do IM/CTI.
Muitos foram os percalços enfrentados naqueles poucos dias em que trabalhávamos intensamente para terminar em tempo os protótipos para a demonstração.
WASH: Como foi essa demonstração?
Alaide: A demonstração foi muito bem-sucedida, havendo muita curiosidade, surpresa e entusiasmo dos eleitores, que pediam para voltar trazendo filhos e amigos para, também, experimentarem o sistema. A tela de toque era o ponto alto por seu ineditismo.
Vieram assistir à demonstração seis Ministros de Estados, dentre eles o Ministro do Supremo Tribunal Eleitoral (STE), Sydney Sanches. Lembro-me, inclusive, que tive que ajudar na reserva de voos de alguns deles, apesar de estar atabalhoada com as atividades no laboratório.
Pela importância que adquiriria o evento, a Unicamp transferira os recintos de votação para auditórios nobres, localizados sob o Ginásio de Esportes. O único problema enfrentado foi o aquecimento excessivo dos computadores, em decorrência da pouca ventilação nas salas afuniladas situadas sob as arquibancadas do ginásio. Nada muito grave, pois ventiladores buscados às pressas e colocados sobre os equipamentos resolviam o problema.
Apesar de nosso pedido para que a demonstração não fosse divulgada na imprensa, temerosos que estávamos com um possível insucesso, fomos surpreendidos, às 6h da manhã do dia 25, com a presença no ginásio e redondezas, de repórteres de várias rádios, televisões e jornais do país e do exterior solicitando entrevistas aos ministros, ao juiz e a mim, inclusive, para transmissão ao vivo. Também, no laboratório, enquanto corríamos contra o relógio no desenvolvimento do sistema, ocorreram entrevistas, para nosso alívio, realizadas com o Juiz Valler e o reitor da Unicamp, Prof. Carlos Vogt.
WASH: Esse trabalho contou apenas com o pessoal do CTI?
Alaide: O desenvolvimento do hardware foi realizado pela jovem equipe de pesquisadores e estudantes da Abinfo e do LMI/CTI, destacando-se a contribuição de Luiz Alberto Castro de Almeida e de Marcos Schreiner. No desenvolvimento do software foi fundamental o trabalho da Profa. Silvia Helena Machado Oliveira, da Unicamp, e de Victor Pellegrini Mammana, à época estudante do Instituto de Física da USP.
Colaboraram no desenvolvimento do sistema de leitura do código de barras dos títulos eleitorais simulados, os engenheiros Yasuo Isuyama, da CIS Eletrônica, e Vicente Lopes Jr., da Splice Telecomunicações, ambas empresas associadas da Abinfo.
O entusiasmo com a demonstração do sistema eletrônico contagiou estudantes da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, e outros profissionais, que vieram colaborar no dia da eleição, empenhados em ajudar no transporte e instalação dos equipamentos, na preparação de cartazes e na orientação dos eleitores.
WASH: Qual foi o resultado da demonstração?
Alaide: O sistema de votação foi plenamente aprovado no que se refere à segurança, simplicidade de construção, versatilidade e facilidade de uso, conforme demonstrou sua utilização por mais de 2000 eleitores não treinados previamente. A demonstração teve um enorme impacto junto aos eleitores que votaram no sistema e junto aos jornalistas do país e do exterior presentes. Maior ainda foi o impacto junto ao pessoal do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) responsável pelo controle, acompanhamento e apuração, ao constatarem a eficiência e a rapidez na apuração das quatro urnas eletrônicas.
O presidente do TSE solicitou-nos, com urgência, um relatório sobre o sistema de votação, o qual foi entregue por mim e pelo professor Mammana, tarde da noite, sob chuva, em casa da autoridade do TSE em Campinas (não lembro seu nome), que o levaria a Brasília, em tempo para uma reunião do Presidente do TSE com o Ministro da Justiça. Segundo nos foi relatado, nosso relatório teria subsidiado a decisão de implantar o sistema de votação eletrônico no país, o que levou à aprovação da Lei Eleitoral de 1994.
A repercussão da demonstração levou a que fossemos convocados para uma demonstração no TRE de São Paulo, para a qual foram convidados todos os juízes eleitorais do Estado.
É importante mencionar que na mesma época estavam sendo desenvolvidos na Universidade Coração de Jesus, em Bauru (SP), e em Brusque (SC), sistemas de votação em computador. No entanto, por utilizarem teclado convencional estes sistemas não causaram o mesmo impacto que nosso sistema, que incorporava também a inovação da tela de toque. Votar tocando sobre a imagem do candidato exibida no monitor de vídeo revelou-se uma vantagem insuperável.
A repercussão teve prolongamento em consultas posteriores do TRE de São Paulo, interessado em utilizar o sistema de votação em plebiscitos oficiais para emancipação dos municípios de Holambra e Ilha Solteira. Infelizmente não pudemos atender estas demandas, tampouco outra da IBM interessada em utilizar o sistema numa eleição no Peru, pois ocorriam com um prazo exíguo para os eventos e, também, não disponibilizavam recursos para equipamentos e remuneração das equipes técnicas necessárias.
WASH:– E o que aconteceu depois da aprovação da Lei Eleitoral de 1994?
Alaide: Com a aprovação da lei seguiu-se o trabalho de desenvolvimento e fabricação da urna eletrônica oficial, com prazos e equipes de engenharia de empresas industriais de eletrônica com capacidade de produção em escala. Estas urnas foram também concebidas com critérios de autonomia, simplicidade, segurança e imunidade a fraudes. Não utilizam telas de toque, mas sim teclados convencionais dedicados para a aplicação.
Posteriormente o LMI/CTI foi consultado pela empresa fabricante das urnas eletrônicas, buscando resolver o problema de falhas ocorridas nos displays de cristal líquido das urnas. Identificado tratar-se de falha na conexão entre o display e seu circuito de controle, o problema foi encaminhado ao Laboratório de Confiabilidade do IM/CTI que, com a cooperação da empresa fabricante da urna e da empresa fabricante do módulos de displays, montou-se uma linha de grande escala, operada em três turnos, para o reparo de cerca de 120 mil módulos de displays no prazo requerido pelo TSE. Foi um projeto de grande porte, de engenharia de alto nível, envolvendo materiais e o desenvolvimento de equipamentos sofisticados.
WASH: Na sua opinião, o que representou ou representa, até hoje, a urna eletrônica para o processo eleitoral brasileiro?
Alaide: Há que se entender que nossa contribuição foi demonstrar a viabilidade e as vantagens da eleição eletrônica, para o que desenvolvemos protótipos experimentais inovadores, o que pode ter motivado a adoção das urnas eletrônicas oficiais atualmente adotadas com enorme sucesso no país.
Sem dúvida as eleições brasileiras tornaram-se um exemplo para o mundo por serem íntegras, seguras e céleres. Há que se reconhecer também o extraordinário papel do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na organização, administração e controle das eleições em que votam mais de 100 milhões de eleitores com grande diversidade cultural e social, distribuídos num território continental com características regionais diferenciadas.
Redação: Delma Medeiros